Os dez americanos que tentaram tirar do Haiti 33 crianças sem permissão depois do terremoto serão transferidos nesta quinta-feira para o Ministério Público de Porto Príncipe, que decidirá se cabe ou não um processo por tráfico infantil, informou nesta quarta-feira à agência de notícias France Presse o juiz Isai Pierre-Louis.
A informação foi divulgada no dia em que surgiram evidências de que a versão apresentada pelos americanos para o episódio pode não corresponder ao que realmente aconteceu.
“Obtive a informação preliminar e passei o caso ao Ministério Público. Cabe agora ao ministério decidir o próximo passo neste caso”, explicou Pierre-Louis, juiz de Paix de Delmas (centro de Porto Príncipe), encarregado do caso. “Quando se comete uma infração, cada ator desempenha um papel.”
Mazar Fortil, promotor da corte de Porto Príncipe, disse que o grupo pode ser processado por sequestro, tráfico de crianças e acusações relacionadas a conspiração criminosa. O juiz confirmou as possíveis acusações.
Longe dos trâmites do processo, pais desesperados na vila de Callebas, próxima à devastada capital haitiana, disseram que deram seus filhos de boa vontade, confiando nos missionários americanos que teriam prometido levá-los para uma vida melhor, longe do país seriamente abalado pelo terremoto do mês passado.
As histórias, contadas à agência de notícias Associated Press nesta quarta-feira contradizem as afirmações da líder do grupo de batistas, segundo quem as crianças vieram de orfanatos ou foram entregues por parentes distantes.
Mas os relatos também atestam a miséria de uma nação que era a mais pobre do hemisfério, mesmo antes do terremoto de magnitude 7 de 12 de janeiro, que matou um número estimado de 200 mil pessoas.
Mesmo o primeiro-ministro haitiano, Max Bellerive, disse que reconhece que os americanos podem simplesmente ser benfeitores bem intencionados que acreditavam que a sua intenção de caridade cristã justificava tentar tirar as crianças do país.
“Não há governo no Haiti”, disse o advogado dos missionários, Jorge Puello, nesta quarta-feira, por telefone da República Dominicana.
Em meio de pilhas de escombros das suas casas e aos abrigos improvisados de lata e plástico que os substituíram, moradores de Callebas contaram ter entregado seus filhos.
Tudo começou na semana passada, quando o trabalhador orfanato local, fluente em inglês e em nome dos batistas, reuniu quase toda a aldeia de 500 pessoas em um campo de futebol de terra para apresentar a oferta dos americanos.
Isaac Adrien, 20, disse a seus vizinhos, que os missionários educariam seus filhos na vizinha República Dominicana, disseram os moradores, acrescentando que eles também garantiram que os pais poderiam visitar as crianças.
Muitos pais aceitaram a oferta.
“É só porque o ônibus estava cheio que não foram mais crianças”, disse Melanie Augustin, 58, que entregou sua filha de dez anos para os americanos. Ironicamente, Augustin adotara a menina porque seus pais biológicos não tinham condições de cuidar dela.
Adrien disse que conheceu a líder dos batistas, Laura Silsby, de Meridian, Idaho, em Porto Príncipe, em 26 de janeiro. Ela disse que estava à procura de crianças de rua, disse ele, e ele sabia exatamente onde encontrá-las.
Ele correu para casa em Callebas, onde as pessoas viviam da plantação de cenouras, pimentões e cebolas. Naquele mesmo dia, ele tinha uma lista de 20 crianças.
Em uma entrevista na prisão no sábado, Silsby disse à que a maioria das crianças tinham sido entregues aos americanos por parentes distantes, enquanto alguns teriam vindo de orfanatos que desabaram no terremoto.
Bellerive sugeriu que os americanos poderiam ser processados nos Estados Unidos porque o desestruturado sistema judicial do Haiti poderia não ser capaz de levar à frente um julgamento.
“Está claro agora que eles estavam tentando atravessar a fronteira sem documentos. É claro agora que algumas crianças têm pais vivos. E está claro agora que eles sabiam que o que estavam fazendo era errado”, disse o primeiro-ministro haitiano.
Em Washington, a secretário de Estado Hillary Clinton disse que a tentativa de levar crianças em situação irregular para fora do Haiti foi “infeliz qualquer que seja a motivação” e os americanos deveriam ter seguido os procedimentos adequados.
Ela disse que as autoridades americanas estavam discutindo com as autoridades haitianas como resolver o caso.
A jornada dos americanos começou no verão passado depois de Silsby e Charisa Coulter, que prestara a ela serviços de babá, resolveram estabelecer um orfanato para crianças haitianas na República Dominicana. Coulter está entre os americanos presos.
Elas começaram a comprar roupa usada e a coletar doações de da igreja que frequentavam a Igreja Batista Central Valley, em Meridian, Idaho, e em novembro, registraram a New Life Children’s Refuge, a organização sem fins lucrativos que coordenou a missão no Haiti. Ele listou o endereço de sua casa agora fechada em Meridian como sede.
Então aconteceu o terremoto. Silsby e Coulter agiram rapidamente, recolhendo donativos e montando uma equipe para ir para o Haiti e retirar as crianças urgentemente, disse o pai da ex-babá, Mel Coulter, em sua casa em Kuna, Idaho.
O grupo levou 40 caixas plásticas de bens doados para Salt Lake City em 22 de janeiro, onde embarcou em um voo para a República Dominicana, de onde partiu para o Haiti, onde, quatro dias depois, foi apresentado a Adrien, o haitiano que levou o grupo a Callebas.
Enquanto carregavam o ônibus, em 28 de janeiro, os americanos recolheram as informações de contato de todas as famílias e garantiram-lhes que um parente poderia visitá-las na República Dominicana.
“As crianças ficaram muito felizes. Elas estavam correndo e rindo”, disse Augustin.
Adrien, que serviu como intermediário e tradutor para os missionários, disse que não tinha conhecimento do objetivo mais amplo do grupo. Moradores disseram que foram informados que nenhum de seus filhos seria oferecido para adoção.
Laurentius Lelly, um técnico de informática de 27 anos, disse que entregou seus dois filhos, com idades entre 4 e 6, porque Silsby já havia visitado a região e ganhara a confiança dos moradores.
Lelly disse que ele já não está tão certo sobre a idoneidade dela e que está preocupado com a possibilidade de o sistema judicial haitiano não conseguir investigar apropriadamente o caso.
Nenhum policial haitiano ou assistente social visitou a aldeia depois que os americanos foram detidos na fronteira, dizem os pais.
“Eu gostaria de saber se essas pessoas realmente iriam ajudar as crianças ou estavam tentando roubá-las”, disse Lelly.
As crianças, com idade variando entre dois e 12 anos, estão agora sendo mantidas pela ONG austríaca SOS Children’s Village, em Porto Príncipe. Uma funcionária da organização, Patricia Vargas, disse que nenhuma das crianças que tinha idade suficiente para falar disse ser órfã.
Um pastor nascido no Haiti que disse ter trabalhado voluntariamente como consultor para o grupo batista insistiu nesta quarta-feira que os americanos não tinham feito nada de errado.
Jean Sainvil disse que algumas das crianças eram órfãs e poderiam ser oferecidas para adoção. As crianças com pais deveriam ser mantidas na República Dominicana, e não perder o contato com suas famílias, disse Sainvil, que foi ouvido pela Associated Press em Atlanta.
“Todos concordaram que sabiam aonde as crianças estavam indo. Os pais foram informados, e nós asseguramos que eles seriam autorizados a ver as crianças e até mesmo levá-las de volta se necessário”, disse o pastor.
Sainvil salientou que no Haiti não é incomum que pais que não podem cuidar de seus filhos os enviem para orfanatos. O número de crianças nessa situação, consideradas órfãs, era de cerca de 380 mil, em uma população total de 9 milhões de pessoas, antes do terremoto.
A maioria dos pais disse que não sabe o que fazer se tiver de pegar as crianças de volta.
“Eu estou vivendo em uma tenda com um amigo”, disse Lelly, contando que a maioria dos parentes próximos de sua esposa morreu. “Minha principal preocupação é que se as crianças voltarem eu não seja capaz de alimentá-las.”
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