Em São Paulo, acontece em quase todos os lugares. Nas ruas, nas praças, nos vagões dos metrôs e trens… O fênomeno dos pregadores de rua, estes homens e mulheres que, em nome de Deus, passam horas a desfiar versículos e palavras santas, no entanto, é nacional.
As histórias que contarei aqui são só parte do que realmente acontece. Há muito mais lá fora, seja da sua sala, baia ou escritório (ou onde quer que você esteja lendo este texto), seja da cidade de São Paulo. Mas aqui serão as histórias de alguns destes pregadores, tanto os que descem a Rua Augusta ou os que abundam a Praça da Sé. Desligue-se do seu credo ou da falta dele e venha encarar conosco a profissão de fé destes fiéis.
“Vai passear na Rua Augusta”
O intertítulo acima vem da música “Hey Boy”, da banda Os Mutantes, mas serviria também para contar do “passeio” que presenciei em uma sexta feira a noite. Estava com um grupo de amigos sentados numa mesa de bar quando, de repente, um burburinho tomou a esquina do boteco. Muita gente, vozes exaltadas e sons de guitarra… No meio da cantoria, distingui as palavras Cristo, senhor e paz… e me dei conta de que estava presenciando uma pregação de rua. Segui com os mais de 100 jovens que, ao redor de um amplificador portátil, cantavam e louvavam a Deus.
O guitarrista, e responsável por animar a turma, era o Pastor Gustavo Miranda de Castro, da igreja Renascer em Cristo. “Estamos aqui para mostrar aos jovens a palavra de Deus e celebrar junto com eles”. Ora, é sabido que a Rua Augusta não é conhecida por suas virtudes, mas sim por oferecer variados modos de testá-la e perdê-la. A intenção, segundo o jovem pastor, era justamente fazer uma contraposição a isso. “Vamos sempre a locais que tem esta tradição de não serem ‘templos do Senhor’, para pregar e convocar as pessoas a ouvir a palavra de Deus e deixá-Lo entrar em suas vidas”.
O discurso, embora apaixonado em conotação, tinha, no tom de voz de Gustavo, a denotação do compromisso. Vestia-se de modo simples, sem trajes “sociais” comuns ao imaginário do pregador de rua. A sua guitarra era uma Squier Telecaster preta e o amplificador, carregado por ele e por jovens que se revezavam na função, era um Laney de pequeno porte. A conversa começou na esquina da Rua Antônio Carlos e foi até a Marquês de Paranaguá e, durante toda a decida, enquanto o Pastor Gustavo conversava comigo, outros pastores que o acompanhavam conversavam com as pessoas que cruzavam conosco. “Viemos da Mooca e somos ao todo 10 pastores. Convocamos os encontros por e-mail, nos reunimos no ponto marcado e fazemos nossa pregação”, conta o pastor, de 26 anos.
Jovem de idade, mas rico nas experiências, Pastor Gustavo conta que o seu grupo já pregou na Liberdade, na Avenida Paulista e em locais mais próximos ao seu templo sede. Ciente de que é um “estranho no ninho”, o rapaz que deixou de lado a maconha e o álcool em prol da oração, demonstra confiança no que prega. “Não temos medo de sermos hostilizados aqui. Sabemos que este ambiente não recebe a palavra de Deus com frequência e é por isso que estamos aqui, para trazer os ensinamentos de Jesus Cristo a essas pessoas”. De fato, enquanto caminhamos juntos, nenhuma manifestação contrária foi notada ou percebida. Os jovens riam das músicas, mas não vaiavam, as moças que não sentem frio mesmo durante o inverno lançavam olhares mudos, os bares não pararam de gelar e distribuir suas cervejas aos clientes. Esforço inócuo? Talvez. Mas a satisfação daqueles jovens dá a pista de que o meio, independente do fim, é o mais importante. “A gente propõe uma mudança de vida para as pessoas, representamos uma Igreja e temos alegria em vir aqui. Não é uma obrigação”.
Todas as vozes da Praça da Sé
O sábado, de chuva forte, impediu a ida à praça que é o palco predileto dos pregadores de rua em São Paulo. Foi então que no domingo, com um certo receio (de dar de cara com o lugar vazio), chegamos, o fotógrafo Jucélio Jr e eu, à Praça da Sé. Os sinos da Igreja marcaram 11 horas, as pessoas começavam a deixar o culto e mais gente chegava à Sé sem necessariamente ter o que fazer. Famílias caminhavam por aqui e por ali, tirando fotos e conversando, homens falavam ao telefone, mulheres passavam com filhos, pregadores carregavam suas bíblias… Não eram muitos, na verdade. Apenas três, àquela hora, se dignaram a enfrentar o dia que começara frio mas que aos poucos deixava o sol se espalhar.
O primeiro que se aproximou de nós foi Paulo Francisco Oliveira, ajudante de pedreiro desempregado há dois anos e pregador de rua há sete meses. Magro, grisalho e com diversos dentes faltando, Paulo trazia numa mão uma bíblia surrada e na outra muitos panfletos. “Deus está chamando e se você quiser, pode ir ao templo, nós vamos orar e dar graças”, dizia ele. Com 42 anos, Paulo já fez parte de 15 Igrejas, até encontrar a Igreja Pentecostal Deus é Amor. “Jesus disse que sem ele não existe nada. E foi na busca da salvação que cheguei à igreja em que estou hoje”.
Pregando na Praça da Sé aos sábados e domingos, o missionário sai do Jaraguá, na zona Sul da capital, de ônibus e fica pela Praça até a hora do seu culto, no Glicério. “Nosso trabalho aqui não é em vão, sem obra a fé é morta e sem fé a obra é morta. Por isso prego aqui e depois vou para o culto”, explica. Separado da mulher com quem dividiu o teto há dez anos, está à espera da mulher certa, a ser indicada por Deus. “Deus não quer quantidade, mas sim qualidade”, diz Paulo, enquanto aperta minha mão e se prepara para conversar com outro grupo de pessoas.
Findada a conversa com Paulo, encontramos um raivoso João Henrique dos Santos, que, apontando para a Catedral da Sé, urra ser aquele um local de criação de basiliscos, o monstro mitológico de cabeça de galo e corpo de serpente. “Essa igreja vai contra a palavra de Deus, ela faz culto a imagens”, bradava. Quando por fim se acalmou, me apresentei a ele e falei sobre a proposta da matéria. “Sou pregador desde 82 e já preguei em Recife e aqui em São Paulo, em trens, nas ruas, em parques…”. Fiel à Assembléia de Deus, João Henrique diz que foi para as ruas para combater a falta de conhecimento das pessoas. “Muitas vezes, por não ter um líder, as pessoas são amaldiçoadas”. O discurso dele é mais exaltado, mais ferrenho. Fala e gesticula muito, dentro do seu agasalho que passa muito dos ombros e da calça jeans surrada. “Nunca sai da igreja. Tenho 52 anos e nasci e me criei dentro dela”. Casado há 25 anos e pai de seis filhos, João Henrique acredita que este é um segundo ofício, tão importante quanto o seu primeiro, mecânico.
“Sempre trago meus filhos para a praça, para me verem pregando, porque acho que é importante que eles saibam o que o pai deles faz, além de colocar sustento na mesa. Venho com meu carro e ficamos aqui, das 09h às 18h. Jesus quer o melhor para seus filhos e quer principalmente as coisas humildes, que elevem o espírito. É por isso também que sempre trago meus filhos aqui”.
Ao lado de João Henrique pregava Jailton Alves da Silva, de apenas 22 anos, e também fiel da Assembléia de Deus. O único dentre os três pregadores a se vestir de terno e gravata, o rapaz que começou a pregar aos 17 anos depois de um chamado de Deus, chegou à Praça da Sé há pouco tempo, depois de muito pregar em trens. “Aqui eu chego às 13h e fico até as 18h, pregando, conversando com as pessoas…”. Vindo de uma família de fiéis, Jailton recebeu o chamado e descobriu na pregação o seu verdadeiro talento. “Eu pretendo investir numa formação em Medicina, mas abraçar a vida de missionário como profissão”. Diante da dúvida de como se sustentaria apenas com as palavras espalhadas pelas praças e vagões de trem, o jovem não titubeia. “A Igreja provém o que for preciso. Pregamos nas ruas e não precisamos nos preocupar com ordenados, a Igreja provém tudo que precisamos”. Quando perguntado sobre valores, Jailton, no entanto, se torna escorregadio. “Os valores são o de menos, o que importa realmente é a missão”.
Pergunto então o que os amigos dele acham da dedicação de tardes, faça chuva ou faça sol, à pregação. “Tenho colegas e amigos dentro da Igreja e estes entendem muito bem o que faço. Os amigos que tenho fora, dada as atividades com a pregação, eu não vejo muito, então deles não sei”. As respostas são curtas e quase evasivas, mas espontâneas. Jailton parece estar um pouco inseguro em conversar comigo e, como minha intenção não é coloca-lo numa sinuca de bico, faço a última pergunta, sobre a inspiração na hora de pregar. “Nunca preparo nada. Chego aqui e Deus me ajuda a escolher as palavras certas”.
O homem que conheceu os dois lados
Delcides Marques é antropólogo formado pela Universidade Estadual de Campinas, mas já foi pregador de rua, dos 12 aos 17 anos. Já estudou filosofia, já escreveu um livro sobre religião, crianças e felicidade e hoje é mestre em Antropologia pela mesma instituição que o graduou. O tema dos seus estudos? Os pregadores de rua da Praça da Sé. “Desde a elaboração do projeto de Iniciação Científica, em 2005, que eu retorno à Sé. Todavia, não tenho me voltado aos pregadores como um pregador que divulga oralmente a fé, nem como um teólogo que a elabora lógica e intelectualmente, nem ainda como um poeta que a experimenta literária e serenamente ou mesmo um cético que a estorva criticamente. Dessa vez, como antropólogo, a prática dos pregadores é vista de outro modo”.
É assim que, depois de anos de pregação, Marques volta às ruas para enxergar o mundo por outro prisma, com outras lentes. E conta sobre a época que era pregador. “A conversão ocorreu numa simples e acolhedora comunidade pentecostal da periferia de Osasco, zona oeste paulistana. Nela eu me vi, desde os momentos iniciais, com um pendor para a prática da pregação. Muito em decorrência dessa constatação, tanto a leitura da Bíblia como a participação nas ‘escolas dominicais’, encontros de ‘estudo bíblico’ e ‘cultos de doutrina’ foram constantes e intensas durante anos. Com 15 anos, eu já havia pregado em vários templos pentecostais. Também havia pregado em ‘cultos ao ar livre’, ocorridos costumeiramente aos domingos pela tarde, em praças, terrenos, esquinas, calçadas”.
O caminho da antropologia, no entanto, prevaleceu, mas bebendo sempre das experiências anteriores de Marques. “Minha experiência pode ser vista como uma complexa coexistência de multiplicidades: fé, racionalidade, sensibilidade, crítica, alteridade. Foram alternâncias que variaram entre a fé e a teologia, a teologia e a poesia, a poesia e o ceticismo, o ceticismo e a antropologia. E em cada alternância, uma leitura ou releitura de minha história. Enfim, um nomadismo constante, uma vida pentecostal peregrina: de candidato ao pastorado passei a estudante de antropologia.”.
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