O que diz a ciência sobre a travessia do Mar Vermelho e outras passagens dos Dez Mandamentos
Uma das principais figuras religiosas do mundo, o profeta Moisés e sua
história fundamentam há séculos a fé de bilhões de pessoas – e intrigam
cientistas em igual medida.
A Bíblia diz que Moisés foi escolhido
por Deus para liderar a saída dos hebreus do Egito, onde eram escravos,
rumo à terra prometida de Canaã. Após o reino ser atingido pelas dez
pragas, o faraó Ramsés 2º admite sua libertação, pedida por Moisés.
Durante
o êxodo, um dos momentos mais marcantes, segundo o relato bíblico, é a
abertura do Mar Vermelho pelo profeta para que seu povo fugisse da
perseguição do faraó, que havia se arrependido de sua decisão. É nesta
jornada que Moisés recebe de Deus as tábuas dos dez mandamentos.
Após
vagar 40 anos no deserto, os hebreus chegam a seu destino, mas Moisés
falece no fim do caminho, depois de avistar Canaã ao longe.
Esta
história está na base não só do Cristianismo, como também do Judaísmo, e
Moisés também é reconhecido pelo Islamismo e outras religiões.
Ela
também inspirou diversas interpretações artísticas no cinema, no teatro
e na televisão. Entre as produções mais recentes, está o filme Êxodo:
Deuses e Reis (2014), dirigido por Ridley Scott. Atualmente no ar, a
novela Os Dez Mandamentos, da TV Record, vem atraindo o interesse do
público brasileiro e obtendo altos índices de audiência para a emissora.
De
forma inédita, o folhetim foi líder de audiência na Grande São Paulo
durante a exibição de todo o capítulo em que Moisés abre o Mar Vermelho,
na última terça-feira, com pico de 31 pontos no Ibope e média de 28,1
pontos (cada ponto equivale a 67 mil domicílios), tornando-se o programa
mais visto no país neste dia.
Estes resultados fizeram a Record
anunciar uma segunda novela bíblica para substituir a atual produção e
uma continuação de Os Dez Mandamentos para o próximo ano.
Mas
seria o texto bíblico ficção ou um reflexo de fatos históricos? Seus
acontecimentos têm correspondência em registros históricos desta
sociedade antiga? Quais evidências foram encontradas em investigações
científicas realizadas ao longo das últimas décadas?
MOISÉS
Moisés
era hebreu, mas não escravo, segundo a Bíblia, porque foi encontrado em
um cesto em rio pela filha do faraó, que o adotou.
O
egiptolólogo Jim Hoffmeier, autor de Israel Antigo no Sinai (Oxford
University Press, 2005) explica que esta prática era comum no Egito
Antigo e que persiste de certa forma até os dias de hoje.
"Era
uma forma antiga de colocar uma criança à mercê do destino determinado
pelos deuses. Hoje, colocamos bebês em cestos e os deixamos na porta de
igrejas", afirma Hoffmeier.
A história da primeira infância de
Moisés ainda compartilha muitas semelhanças com um antigo mito da
Babilônia de um rei chamado Sargon, que foi encontrado em um cesto
boiando em um rio.
Entre 600 e 300 a.C., escribas judeus em
Jerusalém registraram as lendas e histórias antigas de seu povo, para
que fossem passadas de geração em geração.
Eles teriam se baseado
no mito de Sargon para criar a história de Moisés? É uma teoria
possível, pois os judeus foram capturados pelos babilônios em 587 a.C e
mantidos em exílio por algum tempo. Neste momento, o mito de Sargon
poderia ter servido de base para o relato sobre o profeta.
Hoffmeier
ainda explica que seria normal a adoção de Moisés pela filha do rei.
Registros deixados pelos faraós mostram que os palácios tinham creches
onde os filhos da realeza eram educados e que crianças estrangeiras
também eram trazidas para participar.
"Nesta época em que supomos
que viveu Moisés, crianças que não faziam parte da nobreza passaram a
poder integrar estas instituições, assim como os filhos de reis
estrangeiros, que eram levados para elas para aprender a ler e
escrever", diz Hoffmeier.
Teria sido simples para filha do faraó, segundo o especialista, colocar um bebê encontrado por ela em uma destas creches.
Estudiosos
do tema ainda questionam se os hebreus eram de fato escravos neste
período do Egito Antigo, pois, além do texto bíblico, não existe provas
históricas ou arqueológicas disso.
"Havia semitas, alguns dos
quais poderiam chamar a si mesmos de hebreus, que faziam parte de grupos
de trabalho. Eles não eram propriedade de um indivíduo. Eles viviam em
vilarejos de trabalhadores", afirma Carol Meyes, professora de estudos
bíblicos da Universidade Duke, nos Estados Unidos.
O rabino
Burton L. Visotzky, professor do Seminário Teológico Judaico, em Nova
York, afirma que, apesar da Bíblia determinar claramente que os hebreus
eram escravos que foram libertados, "há muito pouca evidência desta
escravidão" além deste texto.
"A lição final do (livro bíblico) Êxodo é que a liberdade vem da aceitação da soberania de Deus."
AS PRAGAS
Na Bíblia, as dez pragas são um ato de Deus, que age por meio da natureza. São elas:
As águas do rio Nilo viram sangue;
Rãs cobrem a terra;
Piolhos atormentam a população;
Moscas escurecem os céus;
O gado morre;
Chagas afligem homens e animais;
Uma chuva de granizo destrói plantações;
Nuvens de gafanhotos consomem cultivos;
Trevas encobrem o Sol por três dias;
Os primogênitos morrem.
Especialistas
de diversas áreas, como climatologistas, oceanógrafos e vulcanólogos,
sugerem haver evidências de uma série de eventos naturais que poderiam
explicar estas pragas.
O epidemiologista especializado em
desastres naturais John Marr, autor de um artigo sobre o assunto
publicado nojornal americano New York Times, que que serviu de base para
um documentário da BBC, acredita que as pragas podem ter sido causadas
pela proliferação de um micro-organismo, o Pfiesteria piscicida, nas
águas do Nilo, o que teria envenenado os peixes e levado uma série de
eventos trágicos.
Esta teoria explica as seis primeiras pragas.
Em 1999, ocorreu uma catástrofe ambiental na cidade americana de New
Burn, no Estado da Carolina do Norte. Ao acordar, seus habitantes viram
que um rio local haviam ficado vermelho.
Mais de um bilhão de peixes morreram. Pessoas que trabalhavam próximo do curso d’água ficaram cobertas por feridas.
A
causa foi poluição, após milhões de litros de excrementos dos animais
serem despejados na água em uma fazenda de porcos localizada à beira do
rio. A contaminação causou uma mutação genética no Pfiesteria, que fez
com que o micro-organismo passasse de inócuo a letal.
Para Marr, o
micro-organismo teria matado os peixes, o que teria feito com que o rio
assumisse um tom avermelhado. A poluição teria forçado as rãs a invadir
a terra, onde elas morreriam, gerando uma multiplicação de moscas e
piolhos – que teriam perdido seus predadores naturais. Por sua vez, as
moscas poderiam ter transmitido doenças virais para os animais,
levando-os à morte.
O cientista ainda aponta que "pragas" como
gafanhotos e chuvas de granizo continuam a assolar o Oriente Médio até
hoje. O golpe final – a morte dos primogênitos – poderia ser um
resultado direto da combinação da tradição local e tentativas de lidar
com as outras pragas.
Os cultivos que resistiram aos gafanhotos e
ao granizo poderiam ter sido colhidos e armazenados ainda úmidos,
criando as condições perfeitas para a proliferação de toxinas mortais.
Em uma posição social privilegiada, os primogênitos teriam sido
alimentados com duas porções dos grãos contaminados.
Outra teoria
dá conta de que as pragas teriam sido causadas pela erupção de um
vulcão. Em maio de 1980, o monte Santa Helena, no noroeste dos Estados
Unidos, entrou em erupção, matando tudo em um raio de quase 38 km. As
cinzas expelidas na atmosfera ainda escureceram os céus num raio de 160
km.
Marr argumenta que cinzas de um vulcão poderiam ter dado
início a uma proliferação de algas, com efeito tóxico, no rio Nilo,
desencadeando os mesmos eventos que teriam sido causados pelo Pfisteria.
Esta
teoria parece frágil diante do fato de não existirem vulcões ativos no
Egito, mas a ilha grega de Santorini fica a 800 km ao norte do delta do
Nilo. No século 16 a.C., a ilha foi destruída por uma grande erupção,
milhares de vezes mais potente que uma bomba nuclear e uma das mais
fortes dos últimos 10 mil anos.
Os efeitos deste evento poderiam
ter atingido o Egito? Quando a erupção ocorreu, o vento soprava na
direção sudeste, rumo ao reino egípcio. Amostras das cinzas foram
coletadas do fundo do oceano, e sua maior concentração foi encontrada na
direção do delta do Nilo.
O oceanógrafo Jean-Daniel Stanley, do
Instituto Smithsonian, em Washington, nos Estados Unidos, coletou
amostras de lama e lodo para verificar se as cinzas teriam chegado tão
longe e identificou no Egito fragmentos vulcânicos ligados a esta
erupção.
"Deve ter sido uma experiência aterrorizante. Primeiro,
teria sido ouvida a explosão. Depois, as pessoas teriam sentido a queda
das cinzas jogadas no ar", diz ele.
Mas como isso poderia ter
levado às pragas? Mike Rampino, especialista em modelos climatológicos
da New York University, simulou com a ajuda de um programa de computador
os efeitos da erupção em Santorini.
Suas cinzas teriam bloqueado
o Sol e levado a escuridão ao delta do Nilo. Isso teria sido
acompanhado por eventos climáticos adversos relacionados a erupções,
como tempestades de raios e granizo.
A erupção também teria
levado a uma queda de 2ºC na temperatura, o que teria reduzido as chuvas
e feito o nível dos rios baixar e sua água se estagnar. Junto com
minerais tóxicos das cinzas trazidos pela chuva, isso teria provocado um
grande impacto no Nilo e gerado as condições ideais para a proliferação
de pragas.
O ÊXODO
Segundo a Bíblia, quando os hebreus
deixaram o Egito, o faraó mudou de ideia e enviou 600 bigas para
perseguir os escravos. Este número seria um exagero bíblico?
Em
1997, no sítio arqueológico onde ficava a cidade de Ramsés 2º,
arqueólogos descobriram as fundações de um estábulo, com espaço
suficiente para ao menos 500 cavalos e suas bigas.
O texto bíblico diz ainda que Deus guiou os hebreus em sua jornada com uma coluna de fumaça durante o dia e de fogo à noite.
Se este êxodo ocorreu no século 16 a.C., estas colunas poderiam ser explicadas pela erupção em Santorini?
Apesar
da ilha grega estar a 800 km de distância, a coluna de fumaça saída do
vulcão poderia ter atingido até 64 km de altura acima do nível do mar.
O
climatologista Mike Rampino diz que isso permitiria que ela fosse vista
desde o Egito. Durante p dia, as cinzas poderiam ter sido confundidas
com fumaça e, à noite, a eletricidade estática na atmosfera poderia ter
gerado raios no céu.
A TRAVESSIA
Trata-se do episódio mais famoso – e controverso – do êxodo hebreu.
Ao
ler a Bíblia em hebraico, é possível notar que a palavra "vermelho" foi
traduzida de forma errada. Nesta versão, Moisés e seu povo cruzam o
"yam suph", ou "mar de junco (tipo de planta)".
"Esta é uma
história estranha. Você pode imaginar que cruzar o Mar Vermelho seria
uma tarefa muito difícil, mas fazer o mesmo em um mar de junco seria
algo bem diferente. Esta é uma área de pântano e é provavelmente o local
da travessia", diz o egiptólogo David Rohl, ex-diretor do Instituto de
Estudos de Ciências Interdisciplinares e autor de Êxodo: Mito ou
História (Thinking Media Man, 2015).
Mas como explicar o relato de que o mar teria retornado a seu estado original e afogado os soldados do faraó?
"Se
estamos falando de um pântano raso composto por juncos, haveria ali no
máximo dois ou três metros de profundidade. Então, este tipo de fenômeno
seria fisicamente possível", afirma Rohl.
"Na verdade, isso já
foi testemunhado nos últimos cem anos. O exército egípcio pode não ter
sido completamente dizimado. Muitos cavalos teriam morrido e as bigas
ficado presas na lama."
Mas e quanto à famosa imagem do cânion formado pela elevação da água? Isso teria qualquer correspondência na realidade?
Simulações
da erupção de Santorini mostram que o colapso da ilha gerou um enorme
tsunami de 182 metros de altura, que viajou a 640 km/h.
O geólogo
e especialista em tsunamis Floyd McCoy, da Universidade do Havaí, nos
Estados Unidos, diz que essa foi uma das maiores ondas já registradas na
história e provavelmente atingiu o Egito.
"Acredite ou não,
encontramos evidências dela no fundo do oceano. Tsunamis de fato
rasparam o fundo do Mediterrâneo e moveram sedimentos. Podemos encontrar
estes sedimentos – e isso nos dá uma ideia de sua direção", diz McCoy.
"Um modelo computacional nos mostrou ondas irradiando por todo o Mediterrâneo e atingindo o delta do Nilo."
Esse
tsunami poderia ter dividido as águas do "mar de juncos"? Ao analisar
as ondas pouco antes de quebrarem, percebemos que a água se retrai da
costa.
Um mega tsunami teria feito o mesmo com bilhões de litros
de água – não apenas da costa, mas de rios e lagos conectados ao litoral
– fazendo com que a terra "secasse" por até duas horas.
"Um
tsunami de dois metros provoca uma mudança rápida do nível do mar de
mesma proporção e viaja por vários quilômetros terra adentro", diz
Costas Synolakis, especialista neste fenômeno da Universidade da
Califórnia do Sul. "A força destrutiva de um mega tsunami seria mais do
que suficiente para destruir um exército."
Outra evidência torna
esta teoria plausível. Em 1994, a ilha de Mindoro, nas Filipinas, foi
atingida por um tsunami e um terremoto. O tremor abrir uma grande
rachadura no fundo de um lado localizado a 1,5 km da costa.
Uma testemunha contou na época que viu a água do lago escorrer como em uma cachoeira, sendo tragada até revelar o fundo.
O
tsunami ainda percorreu 1,5 km de um rio, levando consigo uma
embarcação de 6 mil toneladas. A mega onda que atingiu o delta do Nilo
foi mil vezes mais devastadora do que este fenômeno recente.
Outra
teoria formulada por cientistas americanos ainda dá conta que o
movimento dos ventos poderia ter aberto uma passagem de terra nas águas,
o que permitiria a travessia.
Os resultados, divulgados na
publicação científica Plos One, foram baseados em simulações de
computador, nas quais os pesquisadores mostram como um vento forte vindo
do leste e soprando ao longo da noite poderia ter provocado a retração
das águas no local onde um rio antigo se encontrava com uma lagoa
costeira no delta do Nilo. Quando o vento perdeu força, as águas teriam
voltado ao normal.
"A simulação vai de encontro ao relato do
êxodo", diz o líder do estudo, Carl Drews, do Centro Nacional de
Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos.
A pesquisa faz parte de
um projeto científico mais amplo que avalia o impacto de ventos em
corpos de água e, ao identificar o local no sul do Mediterrâneo onde a
travessia teria ocorrido, pode ajudar arqueólogos na busca por novas
evidências.
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