“Raspa careca!”, ordenou Natasha, se despedindo das longas madeixas. “Tá louca?”, respondeu o cabeleireiro, espantado com o pedido. “Me apaixonei por outro homem. Quero mudar o visual”, justificou Natasha. “Então ele é rico!”, exclamou o moço, já com a tesoura na mão. “Sim. Rico de amor. É Jesus…”. Esse diálogo aconteceu há cerca de 20 anos, num salão de beleza do centro da capital. Na época, Pedro Santana, conhecido na noite paulista como Natasha, largou a vida de travesti para se tornar pastor da Assembléia de Deus. Tosou o longo cabelo loiro e voltou a ser homem. Assim como ele, Paulo Rogério Ribeiro e Paulinho de Jesus seguiram o mesmo caminho:
– Só com fé esse milagre acontece. Tenho ganhado muitos homossexuais para Jesus – garante Paulinho de Jesus, ex-Paulete.
Era a segunda vez que Pedro renegava o próprio corpo.
– Ganhei seios por causa dos hormônios e silicone líquido. Tomava uma cartela inteira de anticoncepcional por dia. Perdia pêlos e ganhava peito – afirma Santana.
Ele garante que a exuberância feminina sumiu apenas com exercícios físicos e dieta. Hoje, aos 48 anos, está casado com Antônia, de 39, e tem três filhos: Daniel, de 20, Débora, de 18, e Samuel, de 15.
– Eles sabem da minha história. Não tenho vergonha, é meu testemunho – diz o pastor.
E esse testemunho lota igrejas evangélicas do Brasil e no exterior. Santana já viajou para dezenas de países por causa deste milagre, incluindo o Japão. Agora, ele é gordinho e usa bigode, mas continua dando show.
– Só uso roupa de macho. Nem compro sapato com fivela. Gostava do glamour, de aparecer, sempre fui bem vestida – brinca, durante seu testemunho. Entre uma revelação e outra, os fiéis comemoram, aos berros, com “Aleluia!” e “Jesus te ama!”.
Trauma de infância
Ele lembra da infância difícil. Com 10 irmãos e sem pai, que morreu quando ele tinha 4 anos, a família passou necessidade e, desde cedo, pegou no pesado: como empacotador de supermercado e carregador de água em cemitério.
– Sempre tive interesse por meninos. E depois de ser estuprado, aos 6 anos, caí na vida – diz.
Ele conta que se prostituiu quando era menor. Fez ponto em locais famosos da capital. Quando estava no fundo do poço, foi levado a uma igreja evangélica.
– Só Jesus reverte esse processo. Dizem que uma vez gay, sempre gay. Mas há exceção – garante.
Paulo Rogério Ribeiro, de 37 anos, tem história semelhante, com graves problemas familiares e abuso sexual.
– Nunca fui aceito. Já na gravidez, minha mãe tentou abortar. Usou cinta até o sétimo mês para esconder a barriga. Nasci prematuro e fui para a casa da minha avó, porque minha mãe estava presa – conta.
Aos 9 anos, já sabia o que era a prostituição. A tia, que o acolheu após a morte de sua avó, fazia programa. Aos 17 anos, modificou o corpo.
– Nunca tive carinho… E depois de terem usado meu corpo, já não fazia mais diferença – diz Ribeiro. Hoje ele se diz “curado”, mesmo que nunca tenha se relacionado com mulheres. Não está namorando, mas garante que olha diferente para elas.
– Talvez eu consiga ter um relacionamento quando eu tirar os seios. Mas preciso de R$ 4 mil – diz.
Ribeiro mantém o cabelo curto, usa paletó e camisa larga, porém não se livrou de alguns trejeitos femininos. Diz que são cicatrizes.
– Meu sonho é casar e ter filhos – afirma.
Não há o que curar
Não existe ex-homossexual. A afirmação é do psiquiatra Alexandre Saadeh, que trabalha com sexualidade desde 1993 e cuja tese de doutorado pela Universidade de São Paulo abordou o transexualismo.
– Quem é mesmo homossexual, não escolhe ser. É uma imposição do corpo. Seu desejo é direcionado para alguém do mesmo sexo. É com quem tem prazer de qualidade – explica o especialista, que nunca conheceu homossexuais e travestis que tenham voltado a ser homens.
– Alguns sofriam muito e tentavam de tudo para voltar ao que chamavam de 'normalidade'. Não conseguiram – diz.
Saadeh diz que a religião pode ser um conforto da alma, mas não transforma orientações sexuais.
– Pode amenizar culpas, mas não 'curar' homossexualidade ou transvestismo. Não são doenças, não há o que curar – afirma o especialista.
Para ele, muitas pessoas que passam por estresse importante, que têm história complicada (como de abuso sexual quando criança), podem apresentar comportamento semelhante como forma de defesa ou de compensar marcas decorrentes. E
– E podem não ser travestis – diz.
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