A Comissão de Concordância e Estilo da Assembléia Constituinte da Bolívia, que deveria fazer apenas ajustes no novo texto constitucional, alterou ao menos cinco artigos da Carta, entre eles os que falam de casamento e direitos sexuais.
A oposição e constitucionalistas dizem que as mudanças são mais uma ilegalidade no processo de aprovação do projeto de nova Constituição.
No texto aprovado na sessão maratônica da Constituinte na cidade de Oruro, há dez dias, o artigo referente ao casamento dizia: “O casamento é constituído por vínculos jurídicos e é baseado na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.
Já na versão final publicada no site da Constituinte, o trecho foi mudado para: “o casamento entre um homem e uma mulher…”.
Em outro artigo, foi suprimido trecho que afirmava que o casal tinha o direito de “decidir livremente o número de filhos e filhas que deseja ter”.
“Essas alterações são fruto de um forte lobby das igrejas”, disse o constituinte Samuel Doria Medina, da União Nacional, oposicionista moderado.
Durante a sessão em Oruro, o constituinte Clero Pérez falou em nome dos evangélicos contra a ausência das palavras “homem e mulher” no artigo sobre casamento e contra o trecho de direitos sexuais, que, segundo ele, consentia o aborto. Ao mesmo tempo, assessores jurídicos do governista MAS (Movimento ao Socialismo) comemoravam a ambigüidade do artigo.
Peréz ameaçou fazer campanha pelo “não” no referendo a que a carta será submetida caso não houvesse mudanças. “Somos quase 1 milhão de evangélicos”, disse. A reclamação foi anotada, mas jamais voltou a ser discutida em plenário.
O primeiro-vice-presidente da Constituinte, Roberto Aguilar, negou que as modificações fujam à função da comissão. “É parte deste trabalho corrigir o estilo e tirar os trechos confusos”, disse, em rápida conversa telefônica com a Folha. Questionado se as alterações responderam às pressões religiosas, respondeu: “Bom, obviamente esse é um critério”.
O jornal boliviano “La Prensa” apontou ontem alterações em outros três artigos. Na versão final, foi suprimido trecho que dizia: “Ninguém será privado de liberdade, a não ser por ordem judicial, salvo delito flagrante”. Em outra mudança, a nova Carta prevê que a primeira sessão da Assembléia Legislativa Plurinacional (correspondente à Câmara) seja na capital do país, que foi reconhecida como Sucre. Na versão original, falava-se que a sessão faria um périplo rotativo por várias capitais regionais.
A mudança responde, desta vez, à pressão de dirigentes e da população de Sucre, sede original da Constituinte, cujos protestos paralisaram os trabalhos por meses para que a cidade fosse reconhecida “capital plena”. Também foi suprimida parte de artigo que proibia terrenos baldios urbanos, que poderia ser lida como ameaça à propriedade.
A nova Carta boliviana e a nacionalização dos hidrocarbonetos foram as principais promessas de campanha do presidente Evo Morales. Passados dois anos de sua vitória nas urnas -completados ontem-, ele enfrenta crise política na qual o principal partido da oposição, o Podemos, e seis dos nove governadores do país rejeitam a nova Constituição.
“Não houve a etapa de revisão do texto e nosso partido não participou desta Comissão de Estilo”, diz Doria Medina, que, à diferença dos integrantes do Podemos, participou da sessão de Oruro.
Doria Medina sustenta que a aprovação do texto por dois terços dos presentes à sessão foi uma manobra ilegal do MAS. Os governistas dizem que, como o artigo que determina o tamanho do latifúndio vai a referendo em separado, o texto aprovado ainda não é o final e, portanto, não eram necessários os dois terços.
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