Apocalypto começa com uma citação do historiador Will Durant: uma civilização só se destrói por razões internas. Tomando-a como verdade, o império maia já estaria à beira do colapso quando chegaram Pizarro, suas naves, seus sacerdotes católicos e suas armas de fogo, botando para quebrar. Por isso, a história contada por Mel Gibson se refere à luta entre tribos e não contra os conquistadores espanhóis.
O filme, de boa fatura técnica, envolve três fases. Uma mais curta, mostrando a vida idílica de uma tribo na selva. Outra, quando uma tribo predadora captura a primeira e leva alguns prisioneiros para serem sacrificados aos deuses; a terceira, quando um desses prisioneiros tenta escapar e volta para ajudar sua mulher e filho. Com 2h20, o filme é um pouco longo demais – mesmo para quem gosta dele. Mas, como Gibson (ou a equipe que o auxilia) tem domínio da carpintaria cinematográfica, a história flui, as perseguições funcionam, a barbárie parece crível. Esta é uma apreciação técnica, apenas. Portanto, de importância apenas relativa.
Cru, como carne de açougue
O que, suspeito, terá de ser discutido em Apocalypto é mais uma vez, a maneira como Mel Gibson usa as imagens da violência em seus filmes. Já chega a ser uma tradição – de Coração Valente, interpretado por ele mesmo, passando por A Paixão de Cristo e agora chegando a Apocalypto. Gibson é cru, como carne de açougue. Nota-se o gosto com que se detém em detalhes sanguinolentos e, em particular, cenas de torturas e execuções. Quer dizer, a situação atroz na qual o corpo humano se encontra passivo, à mercê dos algozes.
Sempre é possível argumentar que ele se limita a mostrar as coisas “como elas são”. A agonia de Cristo na cruz, mostrada em detalhes, teria valor moral, em especial para ele, que se diz um cristão fundamentalista: mostrar, sem atenuantes, como Jesus sofreu ao morrer por nós. Essa lição pedagógica não teria o mesmo efeito com eufemismos, elipses e disfarces. Essa é a sua argumentação e poderia ser estendida ao retrato da civilização maia na qual, pelo que se sabe, sacrifícios humanos de fato aconteciam.
Essa violência pode, pelo contrário, ser vista como exploração torpe e sensacionalista dos maus instintos humanos. No fundo escuro de cada um de nós moraria um sádico ou um masoquista a ser despertado. E devidamente explorado para fins comerciais, por que não?
Portanto, não se trata de ignorar a violência como uma paixão existente no ser humano. O é que a sua representação (no cinema, na pintura, na literatura) sempre coloca um dilema ético Como referir-se a ela, sem por isso explorá-la de maneira gratuita? No cinema, isso toma uma dimensão suplementar. Porque uma coisa é descrever uma cena truculenta com palavras. Outra, exibi-la em imagens. Essa é uma discussão que vem acompanhando o cinema ao longo de sua história e não há sinais de que vai terminar por aqui.
Discussões antigas
Por exemplo, já se reprovou a violência estetizada de diretores tão cult quanto Sam Peckinpah ou, mais recentemente, Quentin Tarantino. A discussão chegou ao Brasil na representação da violência urbana proposta por Fernando Meirelles em Cidade de Deus. E já se disse, por exemplo, que um mestre como Krzsysztof Kieslowski foi violento em seu Não Matarás, mas fez isso por um imperativo ético ao propor uma condenação sem reservas da pena de morte. Para fazê-lo, mostrou o crime em detalhes e, também em detalhes, a execução do criminoso. As imagens do enforcamento de Saddam Hussein chocaram a maior parte das pessoas civilizadas. As mesmas que de maneira nenhuma poderiam ser acusadas de nutrir simpatias pelo ex-ditador do Iraque. Batismo de Sangue, do diretor Helvécio Ratton, usa cenas fortes das torturas praticadas durante o regime militar contra presos políticos. Ratton sustenta que eram necessárias. Alguém que sofreu a experiência na pele, e escreveu o livro no qual o filme se baseia, Frei Betto, deu razão ao diretor.
São discussões antigas, provavelmente intermináveis, porque as razões de um lado e de outro não podem ser demonstradas. Cada espectador terá de decidir, por conta própria se tal ou qual cena de violência se justifica no contexto dramático ou se é pura apelação comercial. Na percepção deste crítico, que não deseja ficar no muro, as motivações de Mel Gibson não deixam margem para dúvidas. O caráter violento dos rituais maias poderiam muito bem ser mais sugeridos do que mostrados com tanto gosto pelo diretor. Não são necessários. E nem são eles que estragam um filme pouco inspirador, inclusive porque não se entende através dele o processo de decadência da cultura maia insinuado na abertura. Apenas o pioram, um pouco mais.
Apocalypto (Apocalypto, EUA/ 2006, 139 min.) – Drama. Direção de Mel Gibson. 18 anos. Cotação: Ruim
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